21 de setembro de 2010

Texto a ser estudado no curso de formação com o Professor Amauri Ferreira

Ética na Escola :  A construção de um ethos ético[1]
                                                                                              Amauri Carlos Ferreira[2]
Os dois campos de saber, ética e educação, interagem-se num processo de formação a longo prazo que exige a formação de um ethos educativo. A palavra grega ethos, remete-nos a casa ,morada, lugar em que o ser se sente bem. Especificamente na casa do ser humano que não está pronta, a morada é a construção da liberdade. Liberdade como princípio da ética e da política; um dos pilares da Revolução Francesa, liberdade cantada em prosa e verso pelos utopistas e poetas, associada à justiça, levou K. Marx, no século XIX, a expressar a sua construção, quando discorreu sobre a  venda nos olhos da Justiça, sustentando que  ela (a justiça) não nasceu sob o signo da liberdade. A liberdade é uma construção assim como a morada ética.
 No espaço da escola se processa a construção de um ethos ético, moral e legal. Esse é aperfeiçoado na construção de valores novos que possam abrir possibilidades de convivência com o outro  e na fundação da ética. A ética, em seu conjunto de valores, indica a repetição de hábitos que se traduzem em costumes. Esses costumes levam a uma ação reflexiva e comum, da qual é possível se fazer escolhas a partir de uma convivência de valores mútuos; na qual a vida boa é a vida feliz na relação com o outro.
 O ethos educativo exige dimensões mínimas para se aprender o que é o mundo. Tal aprendizado deriva de instituições que propagam valores que são formados em um tempo longo. Prazo esse que, no espaço escolar, traduz-se em tempo de formação de crianças e adolescentes. Nas últimas décadas do século XX, marcadas pela crise de três instituições de formação como a escola, a família e a religião, novos indivíduos  entraram em cena no espaço escolar,daí propiciando conflitos no ato de educar e formar hábitos, o que demanda tempo, paciência e tolerância.
Em todo o processo de aprendizagem, a relação com o saber é mediada pelo respeito ao outro. O processo de ensinar e aprender, numa construção de um ethos possível, ocorre numa aprendizagem  favorável a estabelecer valores que  conduzam o estudante a uma vida feliz.
Para melhor entender a complexidade do ato educativo, nesse contexto, deve-se reconhecer as novas gerações a partir de seus valores,  acompanhando-as mediante a construção de um ethos escolar  que tenha  no agir o  respeito às  diferenças e, acima de tudo, a paciência histórica de se formar a longo prazo.
I.- Da Formação de Valores

As gerações dos homens são como as folhas  das árvores.Lança-as o vento ao chão,mas as robustas árvores produzem outras,que por sua vez,vêm a fenecer. Assim são os homens. Uns se vão, outros os substituem. (HOMERO,Ilíada,p.69)
                                              

A constatação de que algo não caminha bem no espaço escolar não é nova. A geração que chega ao mundo aprende elementos constituintes da antiga, aperfeiçoa-os e, na maioria das vezes, cria uma marca que a identifica. O problema torna-se complexo quando a geração atual não consegue acompanhar a que chega e uma ausência de referência valorativa se instaura. Essa situação, ao que tudo indica, deu início a seu processo nas últimas décadas do século XX, mediante a juventude e a geração desses anos.
 A juventude é um período curto e as gerações sucedem-se na trama de  imagens que  conferem significado ao mundo. Neste sentido, refletir sobre a juventude seria estabelecer o recorte de um tempo de transição, pois ela, se  inscreve mais numa categoria social que em uma faixa etária. A geração tem como unidade de referência algo que a caracteriza num determinado período de tempo, enquanto a juventude sugere passagens e maleabilidades cronológicas diversas.
Entende-se como geração o grupo de indivíduos que partilham valores e utopias coletivas, sejam elas políticas, sexuais ou religiosas e que se identificam por um determinado tempo, construindo unidades de referência numa determinada época. Até meados dos anos 80, do século passado, o intervalo de uma geração  acontecia em torno de trinta anos, tendo decaído muito nos últimos anos. Tem-se observado um intervalo em torno de 10 anos, o que gera um conflito de gerações bem maior do que o período anterior, dificultando, assim, o acompanhamento dos recém chegados ao mundo.
A formação dos valores está circunscrita à perspectiva da ordem dos fins. Os valores são formados a partir da ordem de princípios, deveres, direitos, obrigações e, ao mesmo tempo, no processo de aprendizagem do que é o bem. Tal aprendizado está circunscrito às instituições de formação tais como: a família, a religião e a escola.  Os valores estão ligados à ordem de interações e, simultaneamente a projeções que se processam no espaço em que se vive e convive.  A emissão de juízos sobre o que o indivíduo gosta, aprecia e deseja caminha numa direção de sentimentos sobre as coisas, que podem ser positivas ou não, na construção de sua ação no mundo. O indivíduo pode projetar juízos positivos ou negativos em relação a coisas, pessoas e sobre si mesmo. Tal processo ocorre na afirmação de valores já constituídos ou na sua oposição, vindo a gerar os contra-valores.
 A formação de valores em direção ao que é o bem estabelece fronteiras no cultivo de virtudes, levando a uma ação justa. Não há uma concepção  nuclear de virtudes, uma vez que  a formação de um ser virtuoso está ligada ao acompanhamento de valores geracionais que desembocam na própria formação do caráter. Não se nasce virtuoso, aprende-se a ser. Assim o processo de ensino/aprendizagem das virtudes não se fundamenta em qualificar essa é melhor ou pior. Mas, em edificar ações conjuntas que direcionem  a uma compreensão mais ampla do ideal de justiça e felicidade.  A palavra virtude pode ser compreendida como berço das excelências humanas que consideramos louváveis, tais como: a solidariedade, a  honra, a coragem, a justiça, dentre outras. Importante ressaltar que os vícios também compõem qualidades dos seres, porém são desprezíveis na construção de um ideal de sociedade em que se possa viver feliz com o outro.
A formação do caráter se associa a virtudes e vícios e, no processo educativo, aparece ligada a uma palavra um tanto quanto estranha, a violência.  A palavra violência possui uma raiz curiosa.  A violência é compreendida a partir do radical vis, que se liga à fibra vi, que se vergava no arco com a ajuda de um ser viril. A formação do arco e o utensílio da flecha para aniquilar e eliminar o outro fazem do radical vis o verbo velle (querer). A vontade cega que viola por meio da força. No outro lado da fibra vi , a necessidade de um ser que usa da força para dobrá-la sem quebrar, donde a dimensão de  um ser adulto que usa de sua própria força para adornar, contornar, conduzir.
A necessidade de um adulto a partir do cuidado  em se curvar ao outro em condição de fragilidade, e guiá-lo para o que é o bem,traz a dimensão de  educar como processo de condução. Nesse caso, a formação para o bem implica uma condição de cuidado com aqueles que chegam ao mundo. Ao dobrar a viga e quebrá-la, estamos frente ao ato de violência como acontecimento. Porém, desta viga decorre a formação do caráter com que as instituições de formação devem se preocupar no que se refere à educação de crianças  e adolescentes.
Quando ocorre a reflexão sobre normas, a problemática sobre regras, razões, princípios, deveres, direitos etc., apresenta-se para ordenar o grupo a respeito dos valores. A problemática do bem e do mal surge como elemento ordenador. A escola tem, por dever, formar valores das gerações que chegam  ao mundo cumprindo sua obrigação na arte de educar. A esfera de formação de valores pode acontecer de forma relativa, isto é, ser bom e justo para o indivíduo em um determinado contexto pode ser natural, mas pode não o ser em outro. Desse modo, a condução no processo educativo tende a levar para uma formação geral, indicando que ser bom e justo se deve ser, em qualquer circunstância.
Cada geração que chega ao mundo ordena seus valores e estabelece suas normas de conduta decorrentes de gerações atuais, desde o que encontra já enraizado. O que se tem constatado nas últimas décadas do século XX é que as instituições de formação que educam a longo prazo, tais como: família religião e escola,  ao entrarem em crise ao final desses anos, deixaram um vazio na formação valorativa. No final dos anos 80, a dificuldade dos educadores em lidar com a indisciplina,  deslocou o  problema para  a instituição família na sua configuração tradicional: pai , mãe e filhos, exigindo da mesma um processo formativo que não correspondia mais à realidade. A família da metade dos anos oitenta, do século XX, já estava constituída pela sua diferença: pais separados, dois homens ou duas mulheres, o vizinho, a (o) avó (ô) no cuidado da criança em seu  espaço da casa.
 Essa nova configuração de família só se incorporou à escola no alvorecer de 2000, o que deflagrou um hiato no acompanhamento de novos valores.É interessante ressaltar que a escola ainda não demandou dessa instituição com sua nova configuração, o encargo de dar continuidade ao processo educativo. Tanto o segmento religioso quanto o escolar, ainda concebem em seus conceitos a família matriz,formada de pai, mãe e filhos.
Face à crise das instituições de formação a longo prazo, obtém-se uma mudança valorativa no que se refere à ação educativa , tanto na autoridade docente quanto na formação de valores. A formação de valores, numa busca pelo acompanhamento daqueles que chegam ao  mundo,  desenvolve-se  ou prossegue, em espaços fora da escola.  Como os espaços constituídos de formação a longo prazo entraram em crise, nas duas últimas décadas do século passado, mergulha-se numa era de crise de valores. Segundo  Hannah Arendt,  “Uma crise só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados,isto é, com preconceitos”(ARENDT, 1992,223).A crise  é o momento de voltar às próprias coisas, às origens do problema.
O que se tem constatado nas gerações que chegam não é uma ausência de valores, mas sim valores que, de uma certa forma, não correspondem ao ideal de se viver em comunidade ou em sociedade. Os valores construídos na escola  configuram  valores que correspondem ao ideal de uma sociedade justa e na educação de crianças e jovens, visando a um futuro em que tais valores devam ser colocados em prática numa vida serena  e feliz.
Fundamental se faz refletir sobre a obrigação dos educadores nesse processo de formação educativa, tendo em vista que a escola tem sido a única em insistir nessa formação valorativa, que passa num primeiro momento, pela legitimação da autoridade docente. Já é de conhecimento dos educadores que a autoridade mantém uma relação com a legitimidade. O processo de legitimação ocorre quando parte de alguém que obedece e considera legítima, a ação de seu poder. Esse processo deslancha  quando conferimos ao outro um conhecimento que tem eficácia e garantia de sua continuidade, numa ação comum. É assim com autoridades escolares, religiosas, sociais e políticas, as quais  conferimos um poder para  agir  em relação ao domínio que exercem.
Frente a crise valorativa, a autoridade do educador tem perdido sua legitimação.No espaço da escola,  perder tal legitimidade significa não educar para a vida  e sim para cumprimento de ordens.O que  não corresponde ao ideal escolar e, muito menos, à preservação e  educação de valores.
De uns tempos pra cá, numa era em que tudo se torna descartável, passamos a considerar a escola um bem de consumo e os profissionais que ali estão,  reféns de estudantes e responsáveis. Essa nova significação induziu a um processo em que elaboração coletiva de respeito às diferenças e à legitimação daquele que sabe mais, em sentido de vivência valorativa, foi considerado desnecessário, o que só recrudesceu a crise de valores.
Há uma competência inegável da escola, cuja obrigação  consiste  em formar a longo prazo. Perdê-la significa comprometer gerações futuras. A condição de estudante exige dele uma obrigação no sentido de seu dever moral. Uma criança e um adolescente podem desejar o que eles consideram necessário para sua formação. No entanto, a decisão e a condução do processo ainda se acham no domínio daqueles que, na atualidade, conhecem  o que é melhor para que ela sobrevenha. Tal assertiva necessita ser verdadeira até para formação mínima em relação ao outro.  A obrigação está agregada  a processos de reconhecimento do outro,ocorrendo tão somente  na legitimação,  seja institucional ou de caráter pessoal.
Um estudante, como qualquer pessoa, pode gostar mais ou menos de alguém, mas deve aprender o valor dessa pessoa,  gostando ou não dela. O que está em jogo não é um juízo de gosto, mas um juízo de ideal de justiça, o qual  só se apreende ante a formação que leva  tempo. A título de exemplo: uma criança ou um jovem pode escolher entre executar  ou não  uma atividade que ele considera fundamental para sua ação no dia. Mas, não lhe confere o direito de julgar o que ele deve ler ou fazer, nas atividades planejadas pela instituição escolar.
Atualmente, a idéia de obrigação tem sido incorporada como algo negativo ao processo de formação. Cabe lembrar que na ética ela é central para o aprendizado da convivência da diferença. Posso não gostar de alguém, mas preciso reconhecer a competência na ação de direitos e igualdades conquistados.  A relação professor/ aluno, filhos/responsáveis é hierárquica e passa pelo processo de sua  legitimação em instituições que têm, como  dever, fazerem-se  reconhecidas.
É claro que obedecer pode gerar processos de autoridades autoritárias, que podem conduzir à violência, como acontecimento. O que não deixa de ter sua legitimidade em regimes totalitários, mas que não é nosso caso. Evidentemente que todo  processo social exige o ethos legal, no qual se aprende numa legitimação, o que é correto ou não. Para tal, o aprendizado passa pela legitimação de autoridades.
            Considerar que a obrigação é negativa é não ter  compreensão para o fato de que a educação se faz a longo prazo  e exige regras. Formar, ao estabelecer limites, é adornar a viga da violência, é  esculpir o caráter daqueles que chegam ao mundo. A obediência e a insurreição no espaço da escola são fundamentais para  conferir legitimidade a uma instituição   cuja a obrigação é  formar  para a vida.  A escola básica não tem que ser o lugar de realização de desejos de estudantes, ou de vontades de responsáveis que delegam a ela o poder de educar, contudo não a legitimando, quando de uma  ação de aplicabilidade desse poder. Ela (a escola) constitui o  espaço de formação de vontades coletivas, o que implica uma noção de dever, que consiste  em uma obrigação moral, visto que forma, preparar  para a cidadania.
Com a crise das instituições, a exigência do dever passou a ser algo conferido por muitos educadores como de referência autoritária- o que não é verdadeira. A obrigatoriedade da escola para todos implica a construção de um ethos legal e, por conseqüência deve ser ensinado àqueles que chegam ao mundo e exigido igualmente. O dever de responder a uma demanda na formação de valores  geracionais é fundamental. Ives de La Taille (1999) assinala que :

A vontade de aprender e crescer não implica que o processo de aprendizagem  seja linear e  tranqüilo:por mais      interessada          que seja a criança, haverá momentos em que terá menos vontade de estudar, sobretudo em relação à disciplina acadêmica necessária  na sistematização de conhecimentos, mas deverá fazê-lo por estar na escola e deve cumprir um programa(se a curiosidade pelo mundo pode ser considerada inata, a procura de sistematização de saberes não  o é).E também, tal vontade de aprender não necessariamente coincide com as disciplinas escolares:por mais amplo que seja o currículo do ensino fundamental,as áreas possíveis de interesse da criança nunca poderão ser garantidas- e haverá sempre matérias que não a interessarão.(LA TAILLE,1999,16).

Essa exigência saudável implica no aprendizado do ethos legal e moral. A exigência do dever na escola é prerrogativa de quem educa. Deixar de  estabelecer limites ou  de se fazer obedecer no processo educativo  é deformar o caráter daqueles que  chegam  ao mundo. A formação de hábitos inicia-se fora da escola , em meio à obediência a atividades rotineiras: desde o cumprimento de horários para alimentação  até  a  higiene pessoal. Certas coisas não competem a escolhas da criança, mas sim de imperativos  a serem cumpridos e formatados.Na  aquisição de valores, essas atividades rotineiras  desembocam na convivência com um outro diferente do que se é .  Os valores morais são de responsabilidade das instituições. A construção desses valores está circunscrita nesse contato, ao  objeto da educação.
Hanah Arendt (1992) lembra que o objeto da educação é a  criança.Deve-se acrescentar também, o jovem, uma vez que tanto a criança quanto o jovem necessitam do acompanhamento de um adulto; a arte de educar crianças e adolescentes prescinde de cuidado e  essa categoria,  se ancora sobre duas áreas do conhecimento humano: saúde e educação . A primeira cuida do corpo e a segunda, do espírito. Na primeira,  a palavra latina “ coera”, que vai proporcionar  cura. O adulto que detém um conhecimento sobre determinada área do saber  se curva ao outro , que está frágil e tenta curá-lo.Na segunda, o adulto que sabe mais em termos de vivência daquele  que está chegando ao mundo, curva-se a ele e o conduz ao que considera ser o correto para sua vida .  Hannah Arendt nos lembra que,
 A educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana, que jamais permanece tal qual é , porém se  renova continuamente através do nascimento, da vinda de novos seres humanos. Esses recém-chegados, além disso, não se acham acabados, mas em um estado de vir a ser ( ARENDT,1992,p.234).

Como toda formação a longo prazo ela demanda ação conjunta com diversos segmentos sociais. Percebe-se que para essa formulação há necessidade de se exigir a presença de outros segmentos. A reclamação de professores da educação básica é legítima em seu processo de ensino/ aprendizagem,  ma vez que não se ensina nada sem o mínimo de condições de legitimidade da autoridade do  educador. Como também, sem a continuidade necessária de atividades rotineiras fora do espaço escolar. A atividade de rotina está associada a formação de hábitos. “... o hábito é uma propriedade fundamental da práxis humana, é o fato de significar uma aquisição do agente posto à sua disposição em virtude da intencionalidade consciente que está na sua origem, distinguindo-o  do comportamento instintivo e puramente repetitivo que o animal recebe da natureza”(LIMA VAZ, 1999,p. 41).
 A formação do hábito  procede de uma repetição qualitativa de atitudes .   A formação de hábitos configura pré-requisitos de registros do processo de entendimento que exige reflexão para  à práxis. Nesse sentido, todo o processo  de educar  requer continuidade e exigências mínimas,  uma vez que o processo educativo se dá a longo prazo. Para se chegar ao ethos ético, o aspecto de obediência e compreensão da lei é fundamental.
A esta situação remontamos à idéia corriqueira da necessidade da disciplina para se ensinar a partir de limites. Ensinar a criança e ao adolescente que não se pode fazer tudo é ingressá-lo no mundo da convivência do diferente e, ao mesmo tempo, ao mundo da cultura. Tem sido lugar comum o banimento da disciplina. Para  este tipo de atitude, conseqüências desastrosas no ato de educar tem acontecido. Mesmo que as próprias crianças estabeleçam suas leis, deve existir algumas que assegurem a todos os direitos e os deveres nos quais preservem o ser humano do exercício da violência como acontecimento, e que a mesma seja a de formação do caráter. Daí, a importância da construção de valores no espaço da escola, tendo em vista a legitimidade da autoridade docente, como também da possibilidade para formação ética e cidadã.

2.2-   A construção de um ethos ético na escola
O termo o grego Skhole,significa a parada , o repouso .Tal termo vincula-se ao ócio , no sentido de distanciamento do fluxo natural e massacrante da vida cotidiana possibilitando abrir frestas para o desenvolvimento daquela capacidade que mais dignifica o ser humano:sua capacidade de pensar (DALBOSCO & FLICKINGER,2005,p.7).

A escola não está fora do mundo e os valores do mundo  contemporâneo têm sido o do individualismo exacerbado  numa ausência total de referência do outro. Educar ou ensinar algum tipo de conteúdo tem se tornado complexo e doloroso para  a maioria de professores que pensam num futuro mais justo enquanto assumem a sua condição de educadores.
A preocupação de se ensinar algum tipo de conhecimento  é central para professores,  de uma maneira  geral. É imprescindível condições mínimas para que o processo ensino/aprendizagem aflore. Kant, no século  XVIII -século da educação- estabelecia três categorias  para que esse processo pudesse ocorrer : Cuidado , disciplina e instrução.Sendo essa última o próprio conteúdo a ser aprendido. O Relatório Internacional da Unesco, em seu aprender a conhecer, estabelece três atividades intelectuais: atenção, memória  e pensamento. Sendo essa última, vital para organização do aprendido.
Adquirir algum tipo de conhecimento só se torna viável quando há formação de valores   que levam a uma repetição de atividades habituais pertinentes à formação do caráter. Para que esse aprendizado flua faz-se  necessária a cooperação de instituições que estão fora do espaço escolar, uma vez que o aprendido na escola depende de continuidades , ou de atividades  rotineiras,-que,  no campo da ética, denominamos  hábitos.
A ausência de repetição de hábitos e o aprendizado de novos têm sido constatados na geração que ocupou a escola nas últimas décadas  do século passado, independentemente da classe social. Tal situação tem demandado de educadores no espaço da educação básica, a construção de valores que representem o que é  bom  e justo.
Não é estranho que o MEC e a UNESCO, nos anos 90,do século XX, tenham trazido para formação de estudantes, a problemática da ética. Já é de nosso conhecimento que a ética é  ramo da filosofia prática e que, do ponto de vista formal, ela só faz sentido em relação ao outro, que  é igual em espécie mas diferente enquanto particularidade. Pelo fato de estar diretamente ligada a costumes, ela é considerada a ciência do ethos- numa construção e reconstrução permanentes do agir do ser no mundo.
A palavra ethos remete à idéia de costumes. Numa significação original, remete-nos a abrigo de animais, a morada de que derivará o termo moderno de etologia, que significa o  estudo e comportamento de animais e, por extensão  na antropologia, segundo o dicionário Houaiss da Língua portuguesa(2001,p.1272) “ ciência que estuda os costumes humanos como fatos sociais.” O ethos como costumes puramente humanos  no agir (práxis) faz sentido  no existir dos seres no mundo.
A necessidade da formação ética está circunscrita à relação de convivência mútua que tangencia  o ideal de justiça na formação com o outro, aquele que requer o aprendizado dos costumes, no qual encontramos  equivalência de formação do ethos educativo :
No aprendizado dos costumes os termos ética e moral se equivalem. Moral significa em latim mos ou mores, que remete a hábitos. Esses são adquiridos no decorrer do existir dos sujeitos no mundo ou nos modos que se adquire  e reproduz nas ações. (FERREIRA,2006,p.65)

A construção de um ethos ético no espaço da escola deve  levar em conta o outro, numa perspectiva ética e  autônoma- uma vez  que só se educa eticamente ,caso  o educador seja autônomo e, acima de tudo, ético. Para tal é mister que o mesmo leve em conta o  aprendizado da diferença. O aprendizado da diferença leva à compreensão da diversidade cultural, que exige respeito de valores diferentes. Ao se deparar com o fenômeno da pluralidade cultural, eis que  surge a questão da pluralidade das ações éticas, a exigirem o respeito às diferenças no campo do ethos:  legal , moral e ético.
Essa formação tem comprovado a necessidade do exercício da reflexão para se compreender o campo da aprendizagem de valores. Cuidar da casa, da morada, do nosso lugar no mundo, significa cultivar e aprender, a partir da formação de hábitos,  a relação com o outro.  O outro se torna uma referência do agir, por demandar cuidado. Uma vez que, no dizer de Umberto Eco, “quando o outro entra em cena nasce a ética” (ECO,1999,p.90). Todavia, é no exercício da autonomia do sujeito que se interioriza a norma, reflete-se sobre ela e se escolhe engendrar, em sua atitude, a busca pela justiça. O ato de ser justo pressupõe presidir, avaliar e julgar, buscando hospedar, no interior do sujeito, unidades constitutivas para referenciar sua ação.
A construção de um ethos ético no espaço escolar depende, acima de tudo,  de uma atitude de formar, aos que estão chegando no espaço da escola, a necessidade de se perceber o outro no espaço da igualdade e da diferença  mediante a compreensão da necessidade da lei e o seu desdobramento  na relação com o outro . É evidente que, para que isso ocorra, é fundamental saber que cada geração que chega ao mundo é diferente e que o mundo compõe-se essencialmente pela diferença. Somente a partir da formação da diferença é que se consegue reconhecer o outro para além do rosto. E. Lévinas  expressou tal  perspectiva ao dizer que  o  rosto, sem contexto,  é ético  num primeiro momento.Se não, vejamos:
Quando se vê o nariz, os olhos , a testa, um queixo e se podem descrever, é que nos voltamos para outrem como para um objeto. A melhor maneira de encontrar outrem é nem sequer atentar na cor dos olhos. Quando se observa a cor dos olhos, não se está em relação social com outrem... A relação com o rosto pode, sem dúvida, ser dominada pela percepção, mas o que  é especificamente rosto  é o que não se reduz a ele.  O rosto está exposto , ameaçado, como nos convidasse a um ato de violência. Ao mesmo tempo. O rosto é o que nos proíbe de matar(LEVINAS,1982,p.p 77-78).
A educação de crianças e adolescentes na construção de um ethos ético inicia-se, na escola , no reconhecimento, no acompanhamento e na construção de valores novos.  A convivência com diversos valores, advindos de instituições sociais diferentes, possibilita a coexistência de valores incompatíveis entre si. A escola  segundo os parâmetros curriculares nacionais (p.63)“ veicula valores que podem convergir  ou conflitar com os que circulam nos outros meios sociais que os indivíduos freqüentam ou a que são expostos” .
O compromisso da escola é favorecer a convivência entre sujeitos a partir das diferenças, promover princípios que fundamentam sua ação no mundo; princípios que possibilitem a discussão da democracia, tais como: liberdade, igualdade, justiça , exigência de direitos, convivência com os conflitos- quer  sejam de natureza moral ou ética, respeito mútuo, solidariedade. Essa tentativa deve, de uma certa forma, incluir o desenrolar de um processo reflexivo sobre a diferença, para que a formação ética e moral se instaure nas relações humanas, configurando um reino de justiça e solidariedade , moldados pela liberdade de  escolha.
A  necessidade do ethos legal e moral na compreensão de sua exigência fundamenta-se na possibilidade do ethos ético, o qual ao formar para o outro, reconhece que somos iguais na espécie, conquanto diferentes nas particularidades. O ethos construído a partir da diferença funda a ação ética no seu desdobramento político.
 Se a escola é uma instituição legitimada pela sociedade, é sua obrigação formar para além dela, ou seja, formar para a cidadania. A educação básica tem por obrigação formar valores que se desdobrem numa ação política. Nesse sentido, o desafio dos educadores visa assumir, no seu interior, o processo de legitimação institucional conferido pela sociedade. E, nesse caso, estabelecer imperativos legais e morais em perspectivas reflexivas em relação ao outro, no qual a ética faz sua morada.

 Conclusão
A formação de crianças e adolescentes na escola assume sua condição primeira pela compreensão por parte dos educadores na formação para o outro. Nas últimas décadas do século passado, o hiato da formação de valores repercutiu no ensino de conteúdos disciplinares que exigem atenção e rotina por parte dos estudantes. As atividades rotineiras auxiliam em aspectos como atenção que prescinde da disciplina como elemento de formação interna.   A disciplina no processo educativo sustenta-se de forma a que, no futuro, o indivíduo possa se organizar internamente e, no processo de ensino/aprendizagem, esteja atento à construção do conhecimento.
A ausência de limites nas últimas gerações, e a omissão de formar hábitos pelas  instituições  que educam a longo prazo, têm proporcionado a sociedade um indivíduo que não reconhece no outro a possibilidade de convivência mútua. 
 A formação e o acompanhamento de valores dos que chegam no mundo  constituem uma obrigação de todos no processo educativo . Para aprender, com vistas a uma vida ética e cidadã, necessita-se minimamente de disciplina e atenção. Acima de tudo, de respeito ao outro, sobre o qual se constrói um ethos possível  que tenha como princípio, a justiça.
O espaço da escola tem se tornado o único lugar de construção de um ethos  valorativo no qual a formação de hábitos tem sido possível.No entanto o cotidiano da escola tem enfrentado na complexidade,  desafios da formação de valores no processo ensino/aprendizagem de conteúdos, também centrais na formação do educando.
O ethos ético na escola se sedimenta e se configura como um ideal a ser alcançado pelos educadores, ao mesmo tempo legitimado e  propagado fora da escola,  na ação cidadã , como desdobramento na exigência de direitos  novos. A construção de um ethos ético só se  viabiliza quando educadores se dispõem a reconhecer no outro o princípio da diferença e a igualdade da espécie. Além disso, no dever de acompanhar os que chegam ao mundo.
 É a própria ética do cuidado em se curvar ao outro e conduzi-lo  ao bem e à vida boa , mesmo contra sua vontade .O  ideal do valor da vida só se concretiza na relação com o outro, não obstante o país  em que  se viva,  a cor da pele que se tenha , a língua que se fale , o gênero e a classe social a que se pertença, as escolhas políticas e sexuais que se façam, a religião que se professe. A reflexão sobre o outro e a formação para o outro  exigem respeito e sustentabilidade de valores bons e belos. O cuidado e  o reconhecimento da existência de um mundo melhor equivalem a recorrer a Hannah Arendt(1991,p.18) quando providencialmente  afirma : Estar vivo significa viver em um mundo que  precede a própria  chegada e sobrevive à partida.
A construção de um ethos ético, na escola , significa  aprender e ensinar aos outros que habitarão o espaço hoje ocupado por nós.

Referência Bibliográfica
ARENDT, Hannah. A crise na Educação. In: Entre o passado e Futuro.São Paulo: Perspectiva,1992.
ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito.Rio de Janeiro: Relume Dumará,1991.
DALBOSCO, Almir Claudio & FLICKINGER, Hans- Georg. Educação e Maioridade.SãoPaulo: Cortez; /Universidade de Passo Fundo,2005.
ECO, Umberto.Em que Crêem os que não crêem? Rio de Janeiro: Record,1999.
FERREIRA, Amauri Carlos Ferreira. A morada do Educador: ética e política.In:Educação em Revista. Belo Horizonte: UFMG, n- 43,junho,2006.
FERREIRA, Amauri Carlos. Ensino Religioso nas Fronteiras da Ética.Petrópolis,Vozes,2001.
HOMERO,Ilíada.São Paulo:Paumape,1991.
LA TAILLE,Yves.Autoridade na Escola.IN: Julio Groppa Aquino(org).Autoridade e Autonomia na Escola.Alternativas Teóricas e Práticas.São Paulo:Summus,1999.
LÉVINAS, Emanuel. Ética e Infinito.Portugal: Edições 70,1982.
LIMA VAZ, Henrique C.Escritos de Filosofia IV- Introdução à Ética Filosófica 1.São Paulo: Loyola,1999.
Parâmetros Curriculares Nacionais.Temas Transversais.Brasília:  MEC,1998.



[1] Texto elaborado  para os cursos  de Especialização em  Juventude e Escola  e História da África do LASEB- UFMG. Publicado no  livro Formação Continuada de Docentes da Educação Básica. DALBEN  Angela  Imaculada Loureiro de Freitas &  GOMES,Maria de Fátima Cardoso(ORG.) Belo Horizonte: Autêntica,2009,pp. 153-166
[2] Professor de Filosofia e Ética da PUC-Minas. Pós-doutor em Educação.

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